O Meu Pé de Laranja Lima foi escrito por José Mauro de Vasconcelos em 1968 e desde então já foi adaptado para cinema e teatro, além de ter sido traduzido para 52 línguas e publicado em 19 países.
Este romance juvenil conta a história de Zezé, um menino de 5 anos e suas aventuras no seu pé de laranja-lima.
Como diz o autor, é a "história de um meninozinho que um dia descobriu a dor...".
Leitura essencial para crianças, adolescentes e adultos, é uma história comovente que nos conecta com a doçura da vida.
A seguir, o primeiro capítulo, para dar um gostinho de "quero mais".
O descobridor das coisas
A gente vinha de mãos dadas, sem pressa de nada pela rua. Totoca
vinha me ensinando a vida. E eu estava muito contente porque meu irmão mais
velho estava me dando a mão e ensinando as coisas. Mas ensinando as coisas fora
de casa. Porque em casa eu aprendia descobrindo sozinho e fazendo sozinho,
fazia errado e fazendo errado acabava sempre tomando umas palmadas. Até bem
pouco tempo ninguém me batia. Mas depois descobriram as coisas e vivem dizendo
que eu era o cão, que eu era capeta, gato ruço de mau pelo. Não queria saber
disso. Se não estivesse na rua eu começava a cantar. Cantar era bonito. Totoca sabia
fazer outra coisa além de cantar, assobiar. Mas eu por mais que imitasse, não
saía nada. Ele me animou dizendo que era assim mesmo, que eu ainda não tinha
boca de soprador. Mas como eu não podia cantar por fora, fui cantando por
dentro. Aquilo era esquisito, mas se tornava muito gostoso. E eu estava me lembrando
de uma música que Mamãe cantava quando eu era bem pequenininho. Ela ficava no
tanque, com um pano amarrado na cabeça para tapar o sol. Tinha um avental
amarrado na barriga e ficava horas e horas, metendo a mão na água, fazendo
sabão virar muita espuma. Depois torcia a roupa e ia até a corda. Prendia tudo
na corda e suspendia o bambu. Ela fazia igualzinho com todas as roupas. Estava lavando
a roupa da casa do Dr. Faulhaber para ajudar nas despesas da casa. Mamãe era
alta, magra, mas muito bonita. Tinha uma cor bem queimada e os cabelos pretos e
lisos. Quando ela deixava os cabelos sem prender, dava até na cintura. Mas bonito
era quando ela cantava e eu ficava junto aprendendo.
“Marinheiro, Marinheiro
Marinheiro de amargura
Por tua causa, Marinheiro
Vou baixar à sepultura...
As ondas batiam
E na areia rolavam
Lá se foi o Marinheiro
Que eu tanto amava...
O amor de Marinheiro
É amor de meia hora
O navio levanta o ferro
Marinheiro vai embora...
As ondas batiam”...
Até agora aquela música me dava
uma tristeza que eu não sabia compreender.
Totoca me deu um puxão. Eu acordei.
- Que é que você tem, Zezé?
- Nada. Tava cantando.
- Cantando?
- É.
- Então eu devo estar ficando
surdo.
Será que ele não sabia que se
podia cantar para dentro? Fiquei calado. Se não sabia eu não ensinava.
Tínhamos chegado na beira da
estrada Rio-São Paulo.
Passava tudo nela. Caminhão, automóvel,
carroça e bicicleta.
- Olhe, Zezé, isso é importante. A
gente primeiro olha bem. Olha para um lado e para outro. Agora.
Atravessamos correndo a estrada
- Teve medo?
Bem que tive mas fiz não com a
cabeça.
- Nós vamos atravessar de novo
juntos. Depois quero ver se você aprendeu.
Voltamos.
- Agora vocês sozinho. Nada de
medo que você está ficando um homenzinho.
Meu coração acelerou.
- Agora. Vai.
Meti o pé e quase não respirava. Esperei
um pedaço e ele deu o sinal para que eu voltasse.
- Pela primeira vez, você foi
muito bem. Mas esqueceu uma coisa. Tem que olhar pra os dois lados para ver se
vem carro. Nem toda hora eu vou ficar aqui para lhe dar o sinal. Na volta, a
gente treina mais. Agora vamos que eu vou mostrar uma coisa para você.
Agarrou a mão e saímos novamente
devagar. Eu estava impressionado com uma conversa.
- Totoca?
- Que é?
- Idade da razão pesa?
- Que besteira é essa?
- Tio Edmundo quem falou. Disse
que eu era “precoce” e que ia entrar logo na idade da razão. E eu não sinto
diferença.
- Tio Edmundo é um bobo. Vive metendo
coisas na sua cabeça.
- Ele não é bobo. Ele é sábio. E quando
eu crescer quero ser sábio e poeta e usar gravata de laço. Um dia eu vou tirar
retrato de gravata de laço.
- Por que gravata de laço?
- Por que ninguém é poeta sem
gravata de laço. Quando Tio Edmundo me mostra retrato de poeta na revista,
todos têm gravata de laço.
- Zezé, deixe de acreditar em
tudo que ele fala pra você. Tio Edmundo é meio trongola. Meio mentiroso.
- Então ele é filho da puta?
- Olhe que você já apanhou na
boca de tanto dizer palavrão; Tio Edmundo não é isso. Eu falei trongola. Meio maluco.
- Você falou que ele era
mentiroso.
- Uma coisa nada tem a ver com a
outra.
- Tem sim. Noutro dia Papai
conversava com seu Severino, aquele que joga escopa e manilha com ele e falou
assim de seu Labonne: “o filho da puta do velho mente pra burro”... E ninguém
bateu na boca dele.
- Gente grande pode dizer, que
não faz mal.
Fizemos uma pausa.
- Tio Edmundo não é... Que é que
é mesmo trongola, Totoca?
Ele girou o dedo na cabeça.
- Ele não é, não. Ele é bonzinho,
me ensina as coisas e até hoje me deu uma palmada e não foi com força.
Totoca deu um pulo.
- Ele deu uma palmada em você?
Quando?
- Quando eu estava muito levado e
Glória me mandou para a casa de Dindinha. Aí ele queria ler o jornal e não
achava os óculos. Procurou, danado da vida. Perguntou para Dindinha e nada. Os dois
viraram a casa pelo avesso. Aí eu disse que sabia onde estava e se ele me desse
um tostão para comprar bolas de gude, eu dizia. Ele foi no colete e apanhou um
tostão.
- Vai buscar que eu dou.
- Eu fui no cesto de roupa suja e
apanhei eles. Aí ele me xingou. – “Foi você, seu patife!” Me deu uma palmada na
bunda e me tomou o tostão.
Totoca riu.
- Você vai lá para não apanhar em
casa e apanha lá. Vamos mais depressa se não a gente não chega nunca.
Eu continuava pensando em Tio Edmundo.
- Totoca, criança é aposentado?
- O quê?
- Tio Edmundo não faz nada, ganha
dinheiro. Não trabalha e a Prefeitura paga ele todo mês.
- E daí?
- Criança não faz nada, come,
dorme e ganha dinheiro dos pais.
- Aposentado é diferente, Zezé. Aposentado
é quem já trabalhou muito, ficou de cabelo branco e anda devagarzinho como Tio Edmundo.
Mas vamos deixar de pensar coisas difíceis. Que você goste de aprender com ele,
vá lá. Mas comigo, não. Fique igual aos outros meninos. Diga até palavrão, mas
deixe de encher essa cabecinha com coisas difíceis. Senão, não saio mais com
você.
Fiquei meio emburrado e não quis
mais conversar.
Também não tinha vontade de
cantar. Meu passarinho que cantava para dentro voou pra longe.
Paramos e Totoca apontou a casa.
- É bem ali. Você gosta?
Era uma casa comum. Branca de
janelas azuis. Toda fechada e caladinha.
- Gosto. Mas por que a gente tem
que mudar para cá?
- É bom a gente sempre se mudar.
Ficamos observando pela cerca um
pé de mangueira de um lado e um tamarindeiro do outro.
- Você que quer saber tudo não
desconfiou o drama que vai lá em casa. Papai está desempregado, não está? Ele faz
mais de seis meses que brigou com Mister Scottfield e puseram ele na rua. Você não
viu que Lalá começou a trabalhar na Fábrica? Não sabe que mamãe vai trabalhar
na cidade, no Moinho Inglês? Pois bem, seu bobo. Tudo isso é pra juntar um dinheiro
e pagar o aluguel dessa nova casa. A outra, Papai já está devendo bem oito
meses. Você é muito criança para saber dessas coisas tristes. Mas eu vou ter
que acabar ajudando missa para ajudar em casa.
Demorou um pouco, em silêncio.
- Totoca, vão trazer a pantera
negra e as duas leoas pra cá?
- Claro que vão. E o escravo aqui
é que vai ter de desmontar o galinheiro.
Me olhou com certa meiguice e
pena.
- Eu é que vou desmontar o jardim
zoológico e armar ele aqui.
Fiquei aliviado. Porque senão eu
teria que inventar uma nova coisa para brincar com o meu irmãozinho mais novo:
Luís.
- Bem, viu como eu sou seu amigo,
Zezé. Agora não custava me contar como foi que você conseguiu “aquilo”...
- Juro, Totoca, que não sei. Nada
sei mesmo.
- Você está mentindo. Você estudou
com alguém.
- Não estudei nada. Ninguém me
ensinou. Só se foi o diabo que Jandira diz que é meu padrinho, que me ensinou
dormindo.
Totoca estava perplexo. No começo
até me dera cocorotes para eu contar. Mas nem eu sabia contar.
- Ninguém aprende essas coisas
sozinho.
Mas ficava embatucado porque
realmente ninguém vira ninguém me ensinar nada. Era um mistério.
Fui me lembrando de alguma coisa
que tinha acontecido uma semana antes. A família ficou atarantada. Começou quando
eu me sentei perto de Tio Edmundo na casa de Dindinha, que lia o jornal.
- Titio.
- Que é, meu filho
Ele puxou os óculos para a ponta
do nariz como toda gente grande e velha fazia.
- Quando o senhor aprendeu a ler?
- Mais ou menos com seis ou sete
anos de idade.
- E uma pessoa pode ler com cinco
anos?
- Poder, pode. Ninguém gosta de
fazer isso porque a criança ainda é muito pequena.
- Como é que o senhor aprendeu a
ler?
- Como todo mundo, na Cartilha. Fazendo
B mais A: BA.
- Todo mundo tem que fazer assim?
- Que eu saiba, sim.
- Mas todo mundo mesmo?
Ele me olhou intrigado.
- Olhe, Zezé, todo mundo precisa
fazer assim. Agora me deixe terminar a minha leitura. Veja se tem goiaba no
fundo do nosso quintal.
Colocou os óculos no lugar e
tentou se concentrar na leitura. Mas eu não saí do canto.
- Que pena!...
A exclamação saiu tão sentida que
ele de novo trouxe os óculos para a ponta do nariz.
- Não adianta, quando você
quer...
- É que eu vim lá de casa, andei
pra burro só para contar uma coisa para o senhor.
- Então vamos, conte.
- Não. Não é assim. Primeiro preciso
saber quando o senhor vai receber a aposentadoria.
- Depois de amanhã.
Deu um suave sorriso me estudando.
- E quando é depois de amanhã?
- Sexta-feira.
- Pois na sexta-feira o senhor
não quer trazer um “Raio de Luar” pra mim, da cidade?
- Vamos devagar, Zezé. O que é
Raio de Luar?
- É o cavalinho branco que eu vi
no cinema. O dono dele é Fred Thompson. Eh um cavalo ensinado.
- Você quer que eu traga um
cavalinho de rodas?
- Não, senhor. Quero aquele que
tem uma cabeça de pau com rédeas. Que a gente coloca um cabo e sai correndo. Eu
preciso treinar porque eu vou trabalhar no cinema mais tarde.
Ele continuou rindo.
- Compreendo. E se eu trouxer, o
que ganho?
- Eu faço uma coisa pro senhor.
- Um beijo?
- Não gosto muito de beijos.
- Um abraço?
Aí eu olhei Tio Edmundo com uma
pena danada. Meu passarinho lá dentro falou uma coisa. E eu fui lembrando que
muitas vezes tinha escutado... Tio Edmundo era separado da mulher e tinha cinco
filhos... Vivia tão sozinho e caminhava devagar, devagar... Quem sabe se ele
não andava devagar era porque tinha saudade dos filhos? E os filhos nunca
vinham fazer uma visita para ele.
Dei a volta na mesa e apertei com
força o seu pescoço. Senti o seu cabelo branco roçar na minha testa, bem macio.
- Isto não é pelo cavalinho. O que
eu vou fazer é outra coisa. Vou ler.
- Você sabe ler, Zezé? Que
história é essa? Quem foi que lhe ensinou?
- Ninguém.
- Você está com lorotas.
Me afastei e da porta comentei:
- Traga meu cavalinho sexta-feira
pra ver se eu não leio!...
Depois quando foi de noite e
Jandira acendeu a luz do lampião porque a Light cortara a luz por falta de
pagamento, eu fiquei na ponta dos pés para ver a “estrela”. Tinha um desenho de
uma estrela num papel e embaixo uma oração para proteger a casa.
- Jandira me pegue no colo que eu
vou ler ali.
- Deixe de invenções, Zezé. Estou
muito ocupada.
- Pois me pegue e veja se eu não
sei ler.
- Olhe, Zezé, se você estiver me
aprontando alguma, você vai ver.
Me colocou no colo e me levou bem
atrás da porta.
- Então, leia. Quero ver.
Aí eu li mesmo. Li a oração que
pedia aos céus bênção e proteção para a casa e afugentasse os maus espíritos.
Jandira me depositou no chão. Estava
de queixo caído.
- Zezé, você decorou aquilo. Você
está me enganando.
- Juro, Jandira. Eu sei ler tudo.
- Ninguém pode ler sem ter
aprendido. Foi Tio Edmundo? Dindinha?
- Ninguém.
Ela pegou um pedaço de jornal e
eu li. Li direitinho. Ela deu um grito e chamou Glória. Glória ficou nervosa e
foi chamar Alaíde. Em dez minutos uma porção de gente da vizinhança veio ver o
fenômeno.
Era isso que Totoca estava
querendo saber.
- Ele ensinou e prometeu o
cavalinho se você aprendesse.
- Não foi, não.
- Eu vou perguntar a ele.
- Pois vá perguntar. Eu não sei
dizer como foi, Totoca. Se eu soubesse eu contava pra você.
- Então vamos embora. Você vai
ver. Quando precisar de alguma coisa...
Pegou na minha mão, zangado, e me
puxou de volta para a casa. Aí ele pensou numa coisa para se vingar.
- Bem feito! Aprendeu cedo
demais, seu bobo. Agora vai ter que entrar na Escola em fevereiro.
Aquilo tinha sido ideia de
Jandira. Assim a casa ficava a manhã inteira em paz e eu aprendia a ter modos.
- Vamo treinar a Rio-São Paulo. Porque
não pense que no tempo da Escola eu vou ficar de sua empregada, atravessando
você o tempo todo. Você é muito sabido, que aprenda logo isso também.
***
- Taqui o cavalinho. Agora eu
quero ver.
Abriu o jornal e me mostrou uma
frase de reclame de um remédio.
- “Esse producto se encontra em todas as pharmacias e casas do ramo”.
Tio Edmundo foi chamar Dindinha no
quintal.
- Mamãe. Até Pharmacia ele leu direitinho.
Os dois juntos começaram a me dar
coisas para ler e eu lia tudo.
Minha avó resmungou que o mundo
estava perdido.
Ganhei o cavalinho e novamente
abracei Tio Edmundo. Então ele pegou no meu queixo e me falou emocionado.
- Você vai longe, peralta. Não é
à toa que você se chama José. Você será o sol, e as estrelas vão brilhar ao seu
redor.
Fiquei olhando sem entender e
pensando que ele era mesmo trongola.
- Isto você não entende. É a
história de José do Egipto. Quando você
crescer mais eu conto essa história.
Eu era doido por histórias. Quanto
mais difíceis, mais eu gostava.
Alisei o meu cavalinho, bastante
tempo e depois levantei a vista para Tio Edmundo e perguntei:
- A semana que vem, o senhor acha
que eu já cresci?...
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